A morte no tempo de Jane Austen

Antes de mais nada, quero explicar porque a escolha do tema nada festivo agora no início do ano. Exatamente a um ano atrás, eu recebia a notícia de que minha prima Adriane tinha acabado de falecer. Hoje, então, não é um dia muito alegre para mim – afinal, é o aniversário de morte de uma pessoa querida. Mas eu quis aproveitar a data para me aprofundar em como as pessoas lidavam com a morte há mais de duzentos anos. Como, por exemplo, os familiares de Jane Austen lidaram com a morte dela?

É claro que o sentimento de tristeza existia lá, e continua existindo hoje. Mas o falecimento de um ente querido envolvia muitos rituais e costumes que hoje em dia não são observados. Era um evento solene, com muitas regras de vestuário e de comportamento; ainda que essas regras fossem diferentes, ou “suavizadas”, dependendo da classe social em que os envolvidos estavam inseridos.

Para começar, a expectativa de vida não era das mais altas, especialmente entre as classes trabalhadoras. Havia, é claro, aqueles que superavam essa expectativa, mas é interessante a conclusão de John Byng, em 1801: “caminhando pelo adro da igreja, e lendo alguns epitáfios, percebi que as pessoas mais pobres morrem mais cedo, pois precisam trabalhar mesmo quando estão doentes… é o homem rico que vive mais, aquele que tem todo conforto, uma boa cama, e médicos disponíveis; observe o mausoléu desses, e você pode constatar que eles vivem mais do que o restante da paróquia” (Jane Austen’s England, Roy e Lesley Adkins, páginas 323 e 324).

Isso, é claro, não era a regra. A princesa Charlotte morreu em 1817 aos vinte e dois anos, por exemplo. Nesse mesmo ano, Jane Austen, que vivia com certo conforto, morreu aos quarenta e um anos, vítima de uma doença que, na época, não possuía tratamento:

Ela sentiu que estava morrendo meia hora antes de ficar tranquila e, aparentemente, inconsciente. Durante essa meia hora, como ela sofreu, pobre alma! Ela disse que não poderia nos dizer como sofria, embora tenha reclamado de uma pequena dor constante. Quando eu perguntei se havia alguma coisa que ela queria, ela respondeu que não queria nada além da morte, e alguma de suas palavras foram: “Deus, dai-me paciência! Orem por mim, orem por mim”. A voz dela já estava afetada, mas enquanto ela ainda podia falar, conseguiu se fazer entender (Carta de Cassandra Austen, relatando aos amigos sobre a morte de sua irmã, Jane) (Jane Austen’s England, Roy e Lesley Adkins, página 324).

Essa carta, provavelmente, foi enviada e selada com um lacre preto. Como a notícia de um falecimento era enviada através de correspondência escrita, e como as mortes poderiam acontecer de forma inesperada, essa era uma forma de “avisar” as pessoas do conteúdo da carta antes que elas as abrissem.

Após o falecimento, a pessoa geralmente era enterrada dois ou três dias depois. Durante esse tempo, o caixão ficava aberto em casa, para que os familiares e amigos pudessem se despedir. Isso dava tempo, inclusive, de familiares viajarem para conseguir dizer adeus, embora as vezes não fosse possível: “Eu estava esperançoso de que antes de minha querida tia ser enterrada, eu conseguiria vê-la por uma última vez em seu caixão. Esse prazer melancólico, contudo, me foi negado, pois o corpo estava em tal estado de decomposição que o caixão foi fechado um ou dois dias antes da minha chegada” (Neast Grevile Prideaux, sobre a morte de sua tia) (Jane Austen’s England, Roy e Lesley Adkins, página 328).

Obviamente, era difícil retardar a decomposição dos corpos, e esse é um dos motivos pelos quais as pessoas normalmente eram enterradas nas paróquias onde morriam – e não onde haviam nascido (nos casos de não residirem na mesma paróquia). Além disso, o transporte do corpo era muito caro, e apenas os mais ricos podiam arcar com os custos. E eles os faziam, inclusive quando seus familiares morriam no exterior. Esse transporte podia ser feito com caixões de chumbo, e o falecido era “embebido” em vinho, por exemplo, para retardar a putrefação.

Em casos como esses, de pessoas mais abastadas, os enterros eram realizados em criptas familiares (normalmente dentro das igrejas). Mas a grande maioria da população* era enterrada nos adros.

A cerimônia seguia um rito padrão: o caixão era carregado da casa do falecido até a igreja (por carregadores de caixões ou em um carro funerário). O padre normalmente esperava a procissão funerária nos portões da igreja, depois era rezada uma missa. Após a celebração, o caixão era levado para a cova (que já devia ter sido cavada, embora as vezes acontecesse alguns atrasos).

Era comum que as igrejas tivessem um “portal” (lychgate) na entrada do adro, um portal coberto e com bancos: os carregadores de caixões podiam colocar o caixão ali, sentar e se proteger do mal tempo.

Como eu mencionei anteriormente, o funeral era um evento solene, mas para os mais abastados, podiam também ser eventos bem elaborados, como uma forma de demonstrar o status e a riqueza:

Antes de seguirmos para a igreja, foi servido chocolate, torradas, bolo e vinho. Às onze e meia da manhã, fomos para a igreja com a seguinte procissão: o corpo na frente, em um carro fúnebre puxado por dois cavalos, e então os cabriolés. Eram seis cabriolés no total, onde estavam a família, o clérigo, o agente funerário e as criadas pessoais da falecida. Na parte de trás, a pé, seguiam os criados, todos com fitas pretas nos chapéus, e fechavam a procissão, que era uma visão muito bonita” (Parson Woodforde sobre o funeral de Catherine Howes, em 1782) (Jane Austen’s England, Roy e Lesley Adkins, página 331).

Lembrando que esse não é um exemplo de um funeral de uma pessoa mais pobre. Esses eram enterrados em sepulturas sem marcação, e as autoridades da paróquia arcavam com os custos do funeral*.

Após o funeral, havia o período de luto. A cor padrão para esse período era o preto, mas o branco poderia ser usado por aqueles que eram considerados inocentes aos olhos de Deus, como crianças e moças solteiras. Nessa época, as regras de luto eram um pouco menos rígidas do que as regras que vigoraram no período vitoriano, mas, ainda assim, eram rigorosas, especialmente para as mulheres.

Esperava-se que as mulheres, especialmente as viúvas, permanecessem de luto por pelo menos um ano*. Depois desse ano*, elas entravam em um período de meio-luto, e podiam usar roupas brancas, cinzas, ou cor de lavanda, por exemplo. Os homens já usavam roupas pretas na maior parte do tempo, então podiam usar uma fita preta no chapéu ou braçadeiras, lenços pretos, luvas pretas e, às vezes, gravata preta. Em Persuasão, se não me engano, o primo distante de Anne, William Elliot, usa uma faixa preta no braço indicando o luto por sua esposa. Os militares tinham por regra usar essa faixa preta abaixo do cotovelo.

Achei interessante saber como eram essas regras para as noivas, e encontrei um pouco sobre isso no blog de Donna Hatch. As noivas nunca usavam roupas de luto nos seus casamentos, e nem se esperava que ficassem de luto – justamente por serem noivas. Elas podiam usar roupas pretas por um tempo se seus pais morressem, especialmente porque as noivas não deviam sair e socializar aproximadamente um mês antes de seus casamentos.

Mas como dizem Roy e Lesley Adkins: “o código de luto era feito para aqueles que podiam arcar com os custos de seguir a moda – e a moda era feita para os ricos*” (página 336).

Modelo de um vestido de luto publicado na La Belle Assemblee, em 1818

E a moda exigia a vestimenta preta. Em casos de mortes inesperadas, as pessoas podiam conseguir uma roupa preta para o funeral, mas precisavam mandar fazer outras para o resto do período em que ficariam enlutadas. Isso se tornava um problema quando havia um luto generalizado; por exemplo, quando algum membro da família real morria*. A demanda por tecidos pretos era tanta, e a procura por tecidos coloridos tão baixa, que a indústria têxtil sofria um colapso.

Vale lembrar, ainda, a situação dos criados: seus empregadores normalmente providenciavam as vestimentas adequadas, mas isso quando se tratava de luto por alguém da família do empregador. Quando o luto era por alguém da família do criado isso não ocorria.

Além das vestimentas, havia uma conduta social a ser seguida. As famílias evitavam grandes eventos, como bailes, jantares com dança e etc. Aliás, no início do período de luto, as famílias limitavam seus lazeres às missas e uma ou outra reunião privada. Podiam, também, adicionar bordas pretas em seus cartões de visita, para indicar que estavam de luto.

Regras, e regras, e regras, e regras… é um alívio que não seja assim hoje (se bem que tenho tanta roupa preta no guarda-roupa que provavelmente não teria muitos problemas rs). Mas mesmo com todas essas regras que expliquei aqui, ainda posso ter esquecido de mencionar alguma ou posso ter deixado passar alguma curiosidade, então, caso tenham alguma dúvida podem me chamar nas redes sociais ou mandar um e-mail para contato@romanceshistoricos.com.br 🙂

Quero indicar também esse post da Pauline Kisner, falando sobre o luto e a moda no Brasil em 1816. Vale muito a pena!

Para finalizar esse post (um tanto longo), vou deixar aqui o epitáfio gravado no túmulo de Jane Austen:

Túmulo de Jane Austen, imagem de Tony Grant

Em memória de

JANE AUSTEN,

Filha mais nova do falecido

reverendo GEORGE AUSTEN,

ex-reitor de Stevenson, nesse condado,

ela partiu dessa vida no dia 18 de julho de 1817,

aos 41 anos, depois de uma longa doença suportada

com a paciência e a esperança de um cristão.

A benevolência de seu coração,

a doçura de seu temperamento, e

o extraordinário talento de sua mente

obtiveram o respeito de todos que a conheceram e

o mais caloroso amor dos seus íntimos.

O luto desses é proporcional às suas afeições,

eles sabem que é uma perda irreparável,

mas em suas piores aflições são consolados

pela nobre esperança que a caridade dela,

sua devoção, fé e pureza tornaram

sua alma aceitável aos olhos do

REDENTOR.

 

Observações:

* Não havia cremação nesse tempo, então todo mundo era enterrado. A exceção ficava por conta de criminosos executados (por vezes os corpos eram desmembrados e pendurados em estradas, como um aviso).

* Existiam “clubes de enterro”. As pessoas contribuíam monetariamente com o clube, que custeava o funeral de qualquer membro que falecia.

* Lembrando que isso era variável de acordo com os locais e com a posição social.

* Em alguns blogs, como no de Donna Hatch, encontramos que as mulheres permaneciam seis meses em luto total, e os outros seis em meio-luto.

* Vale destacar que se alguém fosse visitar a corte durante o período de luto, precisava estar de acordo com as normas.

* Revistas de moda (La Belle Assemblee, Ackermann’s Repository, etc) publicavam vestidos para o período de luto, mas apenas os mais ricos podiam se dar ao luxo de copiá-los. A maioria das pessoas transformava roupas usadas em roupas apropriadas para o período. Os mais pobres, que geralmente possuíam apenas uma troca de roupa, podiam apenas usar fitas e faixas.

Espero que tenham gostado do post!

Com carinho, Roberta.

Fontes:

Jane Austen’s England, Roy e Lesley Adkins

Donna Hatch

Jane Austen World

Postado por: Roberta Ouriques

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