As cartas de Jane Austen traduzidas I – Janeiro de 1796

O principal meio de comunicação na época de Jane Austen era a carta, de forma que Jane, enquanto viva, escreveu muitas e muitas e muitas cartas para toda a sua roda de conhecidos. Infelizmente, a maioria dessas cartas foi destruída por sua irmã, Cassandra, e outros familiares – e, segundo uma das sobrinhas de Jane Austen, muitas das cartas que restaram tinham pedaços cortados.

Mesmo assim, as cartas sobreviventes (ou os pedaços que Cassandra Austen permitiu que sobrevivessem rs) dizem muito sobre quem Jane Austen era: uma mulher muito inteligente, com um senso de humor único. Verdade, de vez em quando a gente lê um comentário ou outro e pensa que seria muito legal ser amiga dela. Daquela cabeça não saíam só grandes romances rs!!

Semana passada, eu traduzi uma carta de Cassandra Austen para Fanny Knight, contando sobre os últimos momentos de vida de Jane Austen. E não é que as pessoas gostaram? Então resolvi que, vez ou outra, vou postar traduções das cartas de Jane Austen por aqui. Os assuntos tratados nas cartas, de vez em quando, ficam meio “sem sentido”, mas a leitura dessas cartas é um deleite para todo e qualquer fã da escritora. Eu espero que vocês gostem (e, se gostarem, ajudem a divulgar :D)!

Fragmento de uma carta de Jane Austen para sua sobrinha Anna Lefroy. Crédito: Sotheby’s.
“Steventon, sábado, 9 de janeiro* [de 1796]

Em primeiro lugar, eu espero que você viva por mais vinte e três anos. O aniversário do Sr. Tom Lefroy foi ontem, então você está muito perto de completar mais um ano.

*O aniversário de Cassandra Austen era no dia 9 de janeiro.

Depois desse preâmbulo necessário, eu prosseguirei para te informar que nós tivemos um baile excessivamente bom ontem à noite, e que eu fiquei muito desapontada em não ver Charles Fowle na festa, já que eu havia escutado, previamente, que ele havia sido convidado. Em adição à nossa comitiva no baile dos Harwood havia os Grants, os St. Johns, lady Rivers, suas três filhas e o filho, o Sr. e a Sra. Heathcote, a Sra. Lefevre, dois senhores Watkins, o Sr. J. Portal, as senhoritas Deane, duas senhoritas Legder e um clérigo alto que chegou com elas, cujo nome Mary* nunca poderia imaginar.

*Mary Lloyd, que viria a se casar com James Austen em Janeiro de 1797.

Nós fizemos uma grande gentileza em levar James* em nossa carruagem, mesmo que já houvesse três de nós antes; mas, de fato, ele merece encorajamento pela ótima melhora que teve ultimamente em sua dança. A Srta. Heathcote é bonita, mas nem de perto é tão linda quanto eu esperava. O Sr. H começou com Elizabeth, e depois dançou com ela novamente; mas eles não sabem como serem discretos. Eu me lisonjeio, contudo, em saber que eles irão tirar proveito das três lições consecutivas que dei a eles.

*James Austen, o irmão mais velho de Jane Austen.

Você me repreende tanto na longa e bela carta que recebi de você neste momento que estou quase com medo de te contar como eu e meu amigo irlandês* nos comportamos. Imagine você mesma tudo de mais libertino e chocante com relação a dançar e sentar juntos. Eu só posso me expor, contudo, apenas mais uma vez, porque ele irá deixar o país logo após a próxima sexta-feira, dia em que nós iremos dançar em Ashe, afinal. Ele é um jovem muito cavalheiresco, bonito e agradável, eu asseguro a você. Mas quanto a nós termos nos encontrado, com exceção dos últimos três bailes, eu não posso dizer muito; pois riram tanto dele por minha causa em Ashe, que ele está com vergonha de vir até Steventon, e fugiu quando visitamos a Sra. Lefroy alguns dias atrás.

*Tom Lefroy.

Nós deixamos Warren em Dean Gate no nosso caminho de volta para casa ontem à noite, e ele está agora a caminho da cidade. Ele deixou seu amor etc. para você, e eu irei entregar quando nos encontrarmos. Henry irá para Harden hoje em busca de seu mestrado. Nós iremos sentir extremamente a falta desses dois homens tão agradáveis, e não teremos nada para nos consolar até a chegada dos Coopers na terça-feira. Como eles irão ficar aqui até a segunda-feira seguinte, talvez Caroline vá ao baile em Ashe comigo, embora eu me atreva a dizer que ela não irá.

Eu dancei duas vezes com Warren ontem à noite, e uma vez com o Sr. Charles Watkins, e, para meu inexpressável espanto, eu escapei completamente de John Lyford. Eu fui forçada a lutar bravamente por isso, contudo. Nós tivemos uma ceia muito boa, e a estufa estava iluminada de uma maneira muito elegante.

Ontem pela manhã nós recebemos a visita do Sr. Benjamin Portal, cujos olhos estão lindos como sempre. Todos estão extremamente ansiosos pelo seu retorno, mas como você não pode vir para casa antes do baile em Ashe, eu fico grata por não tê-los dado esperanças falsas. James dançou com Alethea, e trinchou o peru ontem à noite com bastante perseverança. Você não falou nada das meias de seda; eu me permito acreditar, portanto, que Charles não comprou nenhuma, já que eu não posso pagar por elas; todo o meu dinheiro está sendo gasto comprando luvas brancas e seda rosa. Eu queria que Charles tivesse estado em Manydown, porque ele teria dado a você uma descrição do meu amigo, e eu acho que você deve estar impaciente para ouvir algo sobre ele.

Henry continua ansiando fazer parte do exército, e como seu projeto de comprar um cargo de adjunto* em Oxfordshire agora está acabado, ele tem um esquema em sua cabeça sobre conseguir uma patente de tenente ou de adjunto no 86º, um regimento recém-criado, o qual ele espera que seja enviado ao Cabo da Boa Esperança. Eu espero do fundo do coração que ele se desaponte, como sempre, com esse esquema. Nós enfeitamos e doamos todos os velhos chapéus de papel* feitos pela mamãe; eu espero que você não se arrependa da perda dos seus.

*No original: Adjuntancy. No exército britânico, era o cargo de um oficial que auxiliava o comandante de uma unidade militar (um batalhão, um regimento etc.). Ver: Encyclopedia Britannica.
*Chapéus de papel: eram feitos com pequenas tiras de papel entrelaçadas, formando um padrão xadrez. Normalmente eram papeis de escrita, sem nervuras ou marca d’água, mas como papeis estampados eram utilizados para a confecção de leques, pode ser que também fossem utilizados para esse modelo de chapéu também. Ver: Deirdre Le Faye, Letters of Jane Austen, Oxford University Press – Fourth Edition, Notes to Letters 1, Note 14, p. 369.

Depois de eu ter escrito o que escrevi acima, nós recebemos a visita do Sr. Tom Lefroy e de seu primo George. O último está realmente bem-educado agora; e quanto ao outro, ele possui apenas um defeito, que o tempo irá, eu acredito, remover inteiramente – e é que seu casaco matinal é um tanto claro demais. Ele é um grande admirador de Tom Jones, e, portanto, usa as mesmas roupas coloridas, eu presumo, que ele usava quando estava ferido*.

*Aqui Jane está falando do personagem Tom Jones do livro homônimo escrito por Henry Fielding. A passagem encontra-se no sétimo ‘livro’, capítulo 14: “Assim que o sargento se afastou, Jones levantou de sua cama e vestiu-se inteiramente, colocando até mesmo seu casaco que, como era branco, deixava bem visíveis as manchas do sangue que havia corrido por ele” (tradução livre). Texto original disponível no site do Projeto Gutemberg.
Morning Coat publicado na revista Le Beau Monde em novembro de 1816 (fonte: Candice Hern)

Domingo – Por não retornar até o dia 19, você estará exatamente evitando de ver os Coopers, o que eu suponho que seja seu desejo. Nós não recebemos nenhuma carta de Charles já há algum tempo. É de se supor que eles tenham zarpado agora, já que o vento está tão favorável. Que nome engraçado Tom deu ao seu navio! Mas ele não tem nenhum bom gosto para nomes, como nós bem sabemos, e eu me atrevo a dizer que ele batizou o navio ele mesmo. Eu sinto muito pelos Beaches em razão da perda de sua menininha, especialmente por ser aquela que era tão parecida comigo. Eu me condoo com a Srta. M em suas perdas e com Eliza em seus ganhos, e sou sempre sua, J.A.”

“Steventon, quinta-feira, 16 de janeiro [de 1796]

Eu acabei de receber sua carta e a de Mary e eu agradeço as duas, embora o conteúdo das cartas pudesse ter sido mais agradável. Eu não espero de forma alguma vê-la na terça-feira já que as coisas tomaram um rumo tão desagradável, e se você não puder retornar até depois desse dia, dificilmente será possível que possamos te buscar antes de sábado; embora, de minha parte, eu me importe tão pouco com o baile que não seria nenhum sacrifício desistir de ir para poder vê-la dois dias antes. Nós todos sentimos muito pela doença da pobre Eliza – eu acredito, contudo, que ela continuou se recuperando desde que você escreveu, e que nenhum de vocês ficará em uma situação piorada em razão dos cuidados prestados à ela. Que camarada imprestável foi o Charles em encomendar as meias – eu espero que ele passe calor pelo resto da vida por isso!

Ontem eu enviei uma carta para você para Ibthorp, a qual eu suponho que você não vai receber em Kintbury. Não era muito longa e nem muito espirituosa, e portanto, se você nunca recebe-la, não significa muito. Eu escrevi principalmente para te dizer que os Coopers chegaram e em boa saúde – o garotinho é bem parecido com o Sr. Cooper e a garotinha é para ser parecida com a Jane, eles dizem.

Nossa comitiva para o baile em Ashe amanhã irá consistir em Edward Cooper, James (porque um baile não é nada sem ele), Buller, que está hospedado conosco, e eu – eu estou esperando com muita impaciência pelo baile, já que eu espero receber uma proposta do meu amigo no curso da noite. Eu irei recusar, é claro, a não ser que ele prometa dar fim ao seu casaco branco.

Eu estou bastante lisonjeada pelos seus elogios à minha última carta, já que eu escrevo apenas pela fama, e sem qualquer expectativa de ganhos pecuniários. Edward saiu passar o dia com seu amigo, John Lyford, e não irá retornar até amanhã. Anna agora está aqui; ela veio em sua chaise para passar o dia com seus primos mais jovens; mas ela não cede muito tempo a eles ou para nada sobre eles, exceto para a roda de fiar de Caroline. Eu estou muito satisfeita de descobrir através de Mary que o Sr. e a Sra. Fowle estão contentes com você. Eu espero que você continue dando motivos para satisfação.

A chaise era uma carruagem de passeio ou viagem que geralmente era aberta e possuía quatro rodas. Era puxada por um ou dois cavalos (fonte de texto e imagem: Kristen Koster)

Quão impertinente você é em me escrever sobre Tom, como se eu não tivesse oportunidades de receber notícias dele eu mesma. A última carta que recebi dele estava datada de sexta-feira, dia 8, e ele me disse que se o vento estivesse favorável no domingo, o que se provou verdade, eles iriam zarpar de Falmouth naquele dia. A essa altura, portanto, eles devem estar em Barbados, eu suponho. Os Rivers ainda estão em Manydown, e devem estar em Ashe amanhã. Eu tinha a intenção de visitar a Srta. Biggs ontem se o clima estivesse tolerável. Caroline, Anna e eu estávamos há pouco devorando queijo de porco*, e seria difícil dizer qual de nós gostou mais.

*No original: Cold Souse. Atualmente, Head Cheese ou Brawn no Reino Unido. No Brasil, chama-se queijo de porco, que nada mais é do que um embutido de carne, pele e miúdos suínos.

Diga à Mary que eu cedo o Sr. Heartley e todos os seus bens para ela, para seu uso e benefício exclusivos no futuro, e não apenas ele, mas também todos os meus outros admiradores que ela puder encontrar, até mesmo o beijo que C. Powlett queria me dar, já que eu pretendo me confinar, no futuro, a Tom Lefroy, por quem eu não dou nem um tostão furado. Também assegure à ela como a última e inconfundível prova da indiferença de Warren por mim, que ele realmente desenhou aquele cavalheiro para mim e me entregou sem nenhum suspiro.

Sexta-feira – Finalmente o dia do meu último flerte com Tom Lefroy chegou, e quando você receber essa carta ele terá se passado – minhas lágrimas caem enquanto escrevo com essa ideia melancólica em mente. William Chute nos visitou ontem. Eu me pergunto o que ele pretende sendo tão educado. Existe um rumor de que Tom* irá se casar com uma moça de Lichfield. John Lyford e a irmã dele trouxeram Edward para casa hoje, jantaram conosco e nós iremos todos juntos para Ashe. Fiquei sabendo que teremos que tirar nossos parceiros para dançar. Eu irei ficar extremamente impaciente para receber outra carta sua, para saber como está Eliza e quando você irá retornar. Com muito amor etc., sou afetuosamente sua,

J. Austen.”

*Tom Foyle, noivo de Cassandra. Ele morreria no ano seguinte.
Jane Austen e Tom Lefroy: dizem que Tom Lefroy foi a inspiração de Jane Austen para criar nosso amado Mr. Darcy. Mas “ao contrário de Mr. Darcy, [Tom] Lefroy não era herdeiro de grandes propriedades ou de alguma fortuna. A família de Tom esperava que ele fizesse um bom casamento. É perfeitamente possível que Tom adorasse Jane e ela a ele, mas ela infelizmente não possuía a riqueza para alcançar as expectativas da família dele”. Na carta acima, datada de 1796, Jane escreveu: “finalmente o dia do meu último flerte com Tom Lefroy chegou, e quando você receber essa carta ele terá se passado – minhas lágrimas caem enquanto escrevo com essa ideia melancólica em mente“. E, de fato, eles não ficaram juntos:
“Em março de 1799, Tom se casou com Mary Paul, que possuía uma apropriada grande fortuna. Eles tiveram sete filhos e a primeira filha, nascida em 1802, foi batizada de Jane (enquanto é possível que a menina tenha sido batizada em homenagem à autora de Orgulho e Preconceito, é mais provável que tenha sido em honra de sua avó materna)”.
Mas Tom Lefroy não esqueceu de Jane Austen: “Ao saber da morte de Jane, ele viajou até a Inglaterra para prestar suas condolências em 1817”. Ainda, quando mais velho, “foi dito que Tom respondeu afirmativamente quando perguntado se era apaixonado por Jane Austen: ‘com um amor de garoto'”.

(fonte: Newsletter.co.uk)

* Já faz um tempo que li, mas o livro As memórias perdidas de Jane Austen, escrito por Syrie James, trata de um relacionamento de Jane (de forma ficcional, é claro). Eu não sou de chorar lendo livros, mas esse chorei! Recomendo muito – inclusive já fiquei com vontade de ler de novo. (Eu havia escrito que o livro tratava do relacionamento de Jane e Tom, mas a leitora Rebeca Lima Teixeira fez a correção para mim!)
* O relacionamento também é tratado no filme Amor e inocência (original: Becoming Jane), que é lindo!

Até a próxima!

Com muito amor e profundo respeito,

Roberta.

A imagem em destaque foi retirada daqui.
Postado por: Roberta Ouriques

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