Testamentos peculiares

Não é incomum nos depararmos com um romance de época que contenha algum testamento curioso, por assim dizer, em seu enredo. Normalmente esses testamentos deixam claro que o mocinho ou a mocinha precisam se casar com fulano/em tanto tempo/etc. para receberem sua herança, mas há outros exemplos por aí. Por causa disso, eu resolvi trazer para o blog alguns exemplos reais de testamentos do século XVIII e do início do século XIX, englobando, portando, o período georgiano e o da regência. Espero que se divirtam como eu me diverti fazendo essa tradução 🙂

 

MARIDOS BRAVOS

David Davis, falecido em Clapham, Surry. Testamento aberto em janeiro de 1788: “Deixo para Mary Davis a soma de cinco xelins, quantia suficiente para ela se embebedar às minhas custas uma última vez; deixo a mesma quantia para Charles Peter, filho de Mary, de quem sou o suposto pai, mas do que nunca tive e nunca terei nenhuma razão para acreditar.”

William Darley, falecido em Ash, Hertfordshire. Testamento aberto em 1794: “Deixo para minha esposa, Mary Darley, em razão de ter me roubado sessenta guinéus, e por ter pegado dinheiro de John Pugh em meu nome, a soma de um xelim”.

Comentário: Se uma pessoa queria deserdar alguém, o costume era legar um xelim a essa pessoa, como no exemplo acima. Caso contrário, os advogados do deserdado poderiam alegar que o falecido não estava em plenas capacidades mentais na hora de escrever o testamento, por causa de uma doença ou senilidade, por exemplo, ou que simplesmente esqueceu de mencionar o cônjuge ou algum outro membro importante da família. O “um xelim” servia para ter certeza que a pessoa entendesse que havia sido deixada de fora.

O Muito Honorável Henry, conde de Stafford. Testamento aberto em julho de 1719: “Eu deixo para a pior das mulheres, que é culpada de todos os males, filha do Sr. Gramont, um francês, com quem eu infelizmente casei, quarenta e cinco moedas de bronze, com o que ela poderá comprar uma galinha para a ceia e que é uma soma muito maior do que o pai dela pode dar; porque eu descobri que ele não tinha nem dinheiro e nem crédito para uma compra dessas, ele sendo o pior dos homens, e a sua esposa a pior das mulheres, em todos os departamentos. Se eu soubesse do caráter deles, não tinha me casado com sua filha e nem feito de mim um homem infeliz.”

Charles Parker, vendedor de livros, New Bond Street, Middlesex. Testamento aberto em março de 1785: “Eu deixo para Elizabeth Parker a quantia de cinquenta libras, a ela que, através da minha tola afeição, eu tornei minha esposa sem me importar com minha família, minha reputação ou fortuna; e quem, em retorno, não poupou palavras para me acusar, de forma muito injusta, de todos os crimes possíveis à natureza humana, com exceção de roubo na estrada.”

PAIS DESAPONTADOS

Joseph Dalby, St. Mary-Le-Bone, Middlesex. Testamento aberto em julho de 1784: “Deixo para minha filha, Ann Spencer, um guinéu para um anel, ou qualquer outra quinquilharia que ela goste mais; deixo para o palhaço, seu marido, um penny (centavo), para comprar um apito; eu também deixo para esse marido possuidor de uma terrível memória, o buraco por onde eu peido, como uma proteção para o apito, para prevenir que machuque os lábios; e esse legado eu deixo para ele como marca da minha aprovação de sua proeza e sua honra, em levantar sua espada contra mim (na minha própria mesa), desarmado como eu estava. Por fim, deixo para meu filho, Joseph Dalby, que está nas ilhas da Jamaixa, um guinéu, e para acertar nossas contas, deixo meu perdão e a esperança de que o Senhor, nosso Deus, interceda por ele.”

Richard Crawshay, Esquire, falecido em Cyfarthfa, Glamorgan. Testamento aberto em 1810: “Para meu único filho, que nunca seguia meus conselhos, e que me tratava com rudeza em várias oportunidades, ao invés de fazer dele meu executor e herdeiro (como era até o dia de hoje), deixo cem mil libras.”

Comentário: Esse era obviamente um homem muito rico, se cem mil libras era apenas uma porção de sua propriedade quando morreu. Quanto será que o filho iria receber se o pai não estivesse tão bravo?

Philip Thicknessar, Esquire, antigo residente de Londres, falecido em Bolonha, na França. Testamento aberto em janeiro de 1796: “Deixo minha mão direita, que deve ser cortada depois da minha morte, para meu filho, lorde Audley; e eu desejo que ela seja enviada para ele na esperança de que tal visão o faça lembrar de seus deveres para com Deus, já que há muito tempo ele abandonou seus deveres em relação a seu pai, que, um dia, o amou muito.”

AVISO DE UM FABRICANTE DE BOTAS PARA UM BARONETE

Do testamento de John Moody, fabricante de botas, falecido em Carnaby Street, St. James, Westminster, Middlesex. Testamento aberto em outubro de 1806: “Para Sir F. Burdett. Deixo esse pequeno conselho, para tomar cuidado com sua conduta e sua pessoa, e que nunca mais seja o joguete de homens engenhosos em eleições, ou mesmo de pessoas nos mais altos círculos sociais; porque todos esses já conspiraram contra ele, e se a prudência não o governar, certamente a destruição tomará conta dele”.

DE UM JOVEM MARINHEIRO DA MARINHA REAL PARA SEUS COMPANHEIROS DE NAVIO

Samuel Jeffrey, comissário de bordo no navio Amphion, de Sua Majestade. Testamento aberto em julho de 1812: “Para meus amigos, Jack Dalling, Joe Cape e Tom Boardman, a soma de dez libras entre eles, para pagar um bom jantar, no qual eu espero que eles lembrem de mim, e peço que bebam e brindem minha passagem deste para o outro mundo. Meus anéis, etc., para meu irmão, William Henry Jeffrey, para fazer com eles o que bem entender. Eu quero que ele pegue um pouco do meu cabelo (de qual parte de mim não me importa), para pôr em algum medalhão. Agora, o meu maior pedido: que quando for da vontade de Deus que eu me junte a ele no paraíso, que alguns de meus companheiros coloquem meu corpo em meu cofre; se eu morrer ereto, eles vão, tenho certeza, forçar para que eu caiba ali. Depois de se assegurar de que os intrusos ficarão longe, que me joguem nas profundezas do mar, com muito lastro. E agora, como não tenho mais nada para dar, legar ou requerer, eu vou terminar e selar esse que é meu testamento real. Dez da noite. 10 de janeiro de 1810”.

PROVISÕES PARA OS BICHINHOS DE ESTIMAÇÃO

Catherine Williams, falecida em Lambeth, Surry. Testamento aberto em 1796: “Para a Sra. Elizabeth Paxton, dez libras, e cinco libras ao ano, que serão pagas semanalmente pelo meu marido, para cuidar dos meus gatos e dos meus cachorros, enquanto eles estiverem vivos; e meu desejo é que ela cuide bem deles, que não deixe nenhum ser morto ou que se perca. Para meu criado, George Smith, dez libras, e meu burro, para ele poder viver, já que ele gosta de perambular por aí”.

E O GRANDE CAMPEÃO DOS TESTAMENTOS MALUCOS

Elizabeth Orby Hunter, viúva, falecida em Upper Seymour Street, Middlesex. Testamento aberto em junho de 1813: “Deixo para meu amado papagaio, meu fiel companheiro durante vinte e cinco anos, uma anuidade até o fim de sua vida, consistente em duzentos guinéus por ano, a serem pagos semestralmente, enquanto o papagaio viver, para quem quiser cuidar dele e provar sua identidade; e se a pessoa que possuir a guarda substituir meu papagaio por outro durante sua vida ou após sua morte, é meu desejo que seja retirado dessa pessoa ou pessoas, através de meus herdeiros e de meu executor, o direito de receber outros valores; deixo meus herdeiros e meu executor com plenos poderes para recuperar a quantia caso haja base legal para isso.

E eu deixo o papagaio acima mencionado, juntamente com sua anuidade de duzentos guinéus, para a Sra. Mary Dyers, viúva, atualmente residente na Park Street, Westminster. E eu deixo para a Sra. Mary Dyer o poder de legar meu papagaio e sua anuidade para quem ela quiser, desde que a pessoa não seja um criado ou um homem – o beneficiado deve ser uma mulher respeitável.

Eu também desejo que vinte guinéus sejam pagos a Sra. Dyer no momento de minha morte, para serem usados com o papagaio. Também é meu desejo que meu papagaio não seja removido da Inglaterra.

Quem quer que tente desrespeitar meu testamento, ou por quaisquer meios tente deixar de pagar a anuidade de meu papagaio, deve perder tudo o que deixei para ele(a).”

Comentário: Duzentos guinéus, a quantia que a senhora deixou para o papagaio, era a mesma quantia que uma família da classe média necessitava para viver durante um ano – inclusive para pagar seus criados.

 

Qual foi o testamento mais peculiar para vocês? Eu confesso que meu preferido foi o do Joseph Dalby (ele adorava o genro, né?), o da Catherine Williams (estou pensando em fazer um para alguém cuidar dos meus cachorros) e o da Elizabeth Hunter, pois consigo imaginar o desespero da senhora em pensar que não iam cuidar do papagaio que estava com ela há vinte e cinco anos! Pobrezinha!

Espero que tenham gostado!

Com carinho, Roberta.

Fonte: Gaelen Foley

Imagem em destaque: Reading the will, de Otto Erdmann (1886).

Postado por: Roberta Ouriques

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