Um sistema de etiqueta (John Trusler, 1804): Duelos

Não é a primeira vez que vou trazer trechos desse livro do reverendo John Trusler aqui no blog (os outros posts estão aqui, aqui e aqui), e posso dizer que não será a última! rs! É um livro que foi publicado em 1804, onde o autor trata sobre diversos assuntos: etiqueta, galanteio, gastos, etc etc. E o tema de hoje é: duelos!

Quando eu comecei a me interessar mais pelos costumes da época dos romances que tanto amo, eu não conseguia entender os duelos. Não fazia o menor sentido para mim aquela história de atirar no ar e tudo o mais. Mas a verdade é que realmente não faz sentido! Os duelos não funcionavam como os duelos que vemos em filmes de faroeste (onde os combatentes andam, de costas um para o outro, e em determinado momento atiram ao mesmo tempo). No caso dos nossos duelos aqui (rs), o homem precisava ficar parado esperando que o outro atirasse nele. Loucura né?

Enfim, eu acho super interessante esses livrinhos de conduta que eram muito populares no fim do século XVIII e início do século XIX. Tem muita coisa maluca, é verdade, e muuuuita coisa que não faz e nem teria condição de fazer parte do nosso dia a dia, mas eu, particularmente, gosto de imaginar a vida das pessoas que estavam acostumadas a tantas regras e etc. Se bem que… o trecho que escolhi para traduzir hoje não é bem sobre regras sobre duelos, e sim uma crítica à conduta. Vamos lá?

DUELOS

O que eu poderia dizer dessa prática horrorosa? A forma mais favorável de se pronunciar sobre esse crime é dizer que, como no assassinato de um filho bastardo por sua mãe desgraçada, ele surge de um senso de vergonha e honra em seu perpetrador; mas continua sendo assassinato, pois nenhum fim justifica uma má conduta. “Nós não devemos praticar o mal, para que venha o bem”, diz São Paulo, “cuja condenação é justa”.

O duelista que mata seu antagonista para resguardar sua honra e evitar de ser rotulado como um covarde, não é menos criminoso do que a mulher que mata seu filho para preservar sua honra e esconder sua vergonha. Ambos são culpados de assassinato, e embora a lei estabeleça a morte como punição para este último crime, e apenas pisque para o primeiro, trabalhando com a ideia de legítima defesa, Deus, que enxerga mais do que os homens enxergam, irá punir os dois.

O que é esse senso de vergonha que o duelista teme? O desprezo de um grupo de imorais que se juntam em suas noções horríveis, pessoas que um bom homem irá desprezar, uma vez que eles opinam e se comportam de maneira a tornar o assassinato uma profissão.

Todo homem pode agir como um homem fora de si; pelo menos quando a raiva está em seu auge e a reflexão é deixada de lado. Mas na esperança de acabar com esses preconceitos perniciosos, e de salvar uma ou duas vidas no futuro, eu irei me aventurar a argumentar com meu jovem leitor, nos momentos calmos de consideração, quando ele me dá a honra de abrir meu livro e lê essa parte.

Primeiro quero mostrar o absurdo que é a prática, e depois apontar como evitar que ela aconteça, sem a perda de honra e sem o medo de ser chamado de covarde por homens dotados de bom senso e virtude. Quanto às opiniões de outros homens, não vale a pena considerá-las. Um homem pode ser chamado tanto de covarde quanto de tolo.

Dizer que um homem corajoso não teme a morte é inútil; por uma boa causa, ele naturalmente irá arriscar sua vida, mas sem uma boa causa, ele tem todas as razões para temer a morte. A vida é a última estaca de um homem, e sejam nossas expectativas da vida terrena o que forem:

“Nós naturalmente tememos…

Ser, eu não sei o quê… eu não sei onde”.

A vida é desejável para todos os homens, e aquele que declara o contrário é um idiota e não será levado a sério:

“Ou por que a alma se retrai em si mesma e se assusta com a destruição?”

Esse medo que leva os homens a arriscarem suas vidas em duelos não surge, eu estou persuadido a pensar assim, de um desejo de fazer com que seus amigos pensem que ele se atreve a morrer, mas do temor de ser excluído dessa sociedade. Essa exclusão provém de noções equivocadas, e eu vou me esforçar para afastá-las:

Duelar significa exigir, tomar satisfação; e a etiqueta dita, como eu entendo, que geralmente nessas ocasiões a parte desafiada escolhe as armas e, se a escolha for por pistolas, tem o direito de disparar o primeiro tiro; ou seja, a parte que propôs o duelo deve ficar parada para levar um tiro de um homem que ela detesta. Depois, se a parte desafiadora não morrer ou ficar impossibilitada de atirar em resposta, ela tem a opção de atirar em seu antagonista ou atirar no ar. Se optar pela segunda opção, o problema acaba e o desafiador tem a satisfação de seu inimigo ter atirado nele; mas se ele atirar e matar seu inimigo, ele tem a satisfação cristã de ter assassinado aquele que seu Redentor ama.

Mas onde está a satisfação do desafiador em estar em uma competição, vida por vida, com a pessoa que o afrontou? E se aquele que o afrontou for um canalha, por que dar a chance dele tirar sua vida?

Que tipo de satisfação pode surgir, ou que gratificação pode haver, em dar a um homem a quem detestamos a oportunidade de nos tirar prematuramente deste mundo, ou de nos deixar mutilados pelo resto de nossas vidas?

Lembrem-se que um homem que chega prematuramente ao julgamento final, sem se arrepender, e se há alguma verdade no cristianismo, está irrevogavelmente perdido. Se atentar contra a vida de seu adversário e padecer no conflito forem os últimos atos de sua vida, o arrependimento não é admitido e ele morre como um assassino, como se tivesse matado seu antagonista, e sobrevivido a sua queda. Pois nosso Salvador diz: “Aquele que odiou seu irmão, e que o destruiria como pudesse, é um assassino, e nenhum assassino pode entrar no reino dos Céus”. Que péssima satisfação essa – vingar-se de si mesmo!

E na ocasião de ele matar seu antagonista, e então, que tipo de satisfação pode surgir de uma consciência atormentada por ter roubado, talvez, um pai de seus filhos, um filho de seus pais, ou uma mulher de seu marido? Ou de ter enviado um pobre desgraçado para seu fim, talvez quando ele não estava nem um pouco preparado para ir? O falecido lorde Pomfret, que desafiou e matou o Sr. Gray, em um duelo, declarou, durante o resto de sua vida, que nunca mais teve um momento de paz.

Mas diz o desafiante: a vingança é doce. Não arriscando a própria vida: isso é vingar-se de si mesmo. Como esse vingador se sentiria se seu adversário conseguisse a vantagem de desarma-lo? E existem homens que exigiriam que ele implorasse por sua vida! Qual seria a satisfação em um caso desses? Que mortificação deve ser para um homem orgulhoso e espirituoso precisar implorar por misericórdia, e até mesmo pela sua existência, para aquele que, dez minutos antes, era um vilão, seu maior inimigo? Que consolação a honra pode tirar de tal desgraça?

O absurdo dessa prática deve, então, ser muito evidente. Vamos considerar, em seguida, como essa prática pode ser evitada sem a perda da honra ou da imputação da covardia. O melhor modo e o mais certeiro é acabar com a causa. Não dê causa para ofensas e nunca se misture com homens briguentos.

Existem homens que brigariam por um canudo. Um homem prudente foge dessas companhias, da mesma forma que foge de uma casa em ruínas durante uma tempestade, para que nenhum tijolo ou telha caia sobre sua cabeça e o mate.

Lorde Chesterfield diz: “Lembrem-se que há apenas duas alternativas para um cavalheiro; educação ou a espada”. Seja cortês, então, até com aqueles que você detesta, e não preste atenção às afrontas, a não ser que sejam gritantes. Mas se você alguma vez for afrontado em público, e não for possível relevar, mantenha-se calmo, não responda, retire-se do ambiente e antes de decidir ficar ressentido, procure um homem imparcial que possua tanto bom senso quanto experiência (não um oficial, pois o senso de honra deles é geralmente regulado pela profissão) e o consulte sobre a ocasião. Relate o problema com calma e veracidade, e pergunte de que forma você deve agir, sem desgraçar a si mesmo ou chegar a níveis extremos, e então siga o conselho. Ele provavelmente irá tentar resolver as coisas de forma amigável.

Se você fizer parte do exército ou da marinha, relate o acontecido ao seu oficial superior. Se ele puder resolver, ele irá. Os militares se encontram sempre em um dilema esquisito. As regras de guerra absolvem um homem de ser chamado de covarde se ele recusar um duelo, e o condenam caso aceite; mas, por outro lado, se ele não aceitar, seus companheiros oficiais não irão mais se relacionar ou falar com ele, a não ser que o dever assim o determine, e, dessa forma, o homem será obrigado a deixar o regimento.

Um oficial é punido pela corte marcial, caso desafie seu oficial comandante, e esse oficial comandante poderá investir contra ele amparado pela lei. A ideia de covardia nunca ocorre a ele, nem o força a lutar, se ele puder, de forma justa, evitar que isso ocorra. É uma prova de que nada o força a arriscar sua vida, para se vingar de um insulto, a não ser o medo de ser banido. O duque de York precisou tomar uma decisão dessas e lutou contra o coronel Lenox, que o havia desafiado.

A ofensa geralmente se dá quando se fala de forma desrespeitosa sobre outra pessoa. Foi disso que o coronel Lenox acusou o duque de York, seu oficial comandante. Tenha cuidado, então, para nunca cair nesse hábito bobo e afeminado de entreter um amigo às custas de outro; isso pode voltar para você quando você menos espera. Essa conduta é geralmente a causa de brigas.

Eu fico feliz em ver que cavalheiros, homens de honra, e até mesmo militares, em alguns casos, fazem uso das leis do país, quando desafiados, ao invés de optarem pela espada.

Não deixe que o medo de ser chamado de covarde seja um argumento para esse ato de barbárie. A verdadeira coragem consiste em se recusar a fazer o que é errado e em uma resolução e perseverança inflexíveis em fazer o que é certo. É por isso que os homens que recusam um duelo, e a quem os homens de honra (falsamente chamados assim) condenam como um covarde, mostra mais coragem em sua negativa, atacando a noção absurda de homens irracionais, e declarando através de suas ações o que seu cristianismo o ensinou e que o Deus que o fez, e que irá dispor dele na próxima vida, o comanda a resistir a qualquer inclinação que ele tenha para se vingar de uma afronta, ou apoiar o que erroneamente chamam de honra. A resolução, quando iniciada, requer outras resoluções até que se torne um hábito superior aos olhares severos dos idiotas.

Um duelo sempre surge de uma paixão cega ou de um orgulho inexplicável. “Eu geralmente perdoo as afrontas”, diz o general Dumourier, “pessoalmente ou através de um mediador, quando elas não ocorrem publicamente”.

Eu não considero um covarde nenhum homem com espírito suficiente para se defender de um assaltante; e é ocasião suficiente para um homem sacar sua espada, quando é atacado. Ele deve aprender a usar essa arma (pois as pistolas não aparecem do nada nessas horas), mas nunca deve usá-la, a não ser em legítima defesa.

Existe um meio de desarmar a raiva tratando-a com humor, o que um sábio cavalheiro faz bem em aprender; mas isso só pode ser feito com presença de espírito e o comando de seu temperamento, coisas que a explosão e a falta de consideração desconhecem. De fato, são os jovens, majoritariamente, que se envolvem nesses conflitos, quando o calor do sangue os faz perder a razão. Veja o seguinte exemplo: pode ser considerado covardia, mas a covardia em um caso desses é uma virtude…

Um cavalheiro, inadvertidamente, contradiz outro cavalheiro em público, o que enfurece o segundo, que diz: “Como você ousa, senhor, a me contradizer! Se eu estivesse perto de você, eu te daria um tapa na orelha para te ensinar boas maneiras. Pode considerar como um aviso”. A companhia, alarmada em razão das consequências, começa a interferir, mas o outro a cala e responde seriamente: “E eu, senhor, para te punir por sua insolência! Então considere-se um homem morto”. A singularidade dessa réplica, e esse método romanceado de vingança, surpreendeu a companhia tanto quanto a divertiu; o cavalheiro ofendido se juntou às risadas e as partes se reconciliaram.

Que nenhum homem pense que não resistir a um assalto na estrada é uma marca de covardia. Que homem em sã consciência enfrentaria um tiro de pistola por alguns guinéus, ou arriscaria sua vida em uma causa onde a honra não está no jogo? Eu invoco a autoridade de John, conde de Ligonier, sobre esse assunto. Sua coragem, sua honra e sua magnanimidade nunca foram questionadas e ele, certa vez, disse para mim que ele nunca confrontaria um assaltante, independente do que ele fosse perder.

Existe outra consideração que eu penso que deve impedir um homem de duelar. É a necessidade de, caso ele mate seu antagonista, de fugir do país ou se esconder até os próximos assizes*, já que a fiança não é admitida, e então se entregar para uma corte de justiça e enfrentar um julgamento onde não existe a certeza de não ser condenado por assassinato. Os jurados já decidiram dessa forma, e podem fazer isso de novo. Tome como exemplo o caso do major Campbell, que foi executado em Armagh, Irlanda, por ter matado o capitão Boyd em um duelo em 1808. Não muito antes disso, um cavalheiro do exército, sendo isolado de seus companheiros de regimento por ter recusado um desafio, e, em consequência disso, ter sido obrigado a deixar o regimento, entrou com uma ação contra eles por danos morais, e eles foram multados em mil libras. Os juízes e os jurados estão se tornando cada vez mais sérios e severos sobre isso; e eu acho que um homem que mata outro em um duelo dificilmente será absolvido. E mesmo que ele tenha a boa sorte de escapar, a ansiedade e o sofrimento de sua mente em razão de seu feito, para um homem de sentimentos, deve ser terrível. A urgência, o custo e o perigo de ser condenado por homicídio culposo já é ruim o bastante, mesmo que ele escape da pena de morte.

*Assizes: “Os assizes aconteciam duas vezes ao ano, para tratar de casos sérios, tanto criminais quanto cíveis, enquanto os casos menos sérios eram tratados por magistrados amadores nas sessões trimestrais. Havia seis circuitos na Inglaterra e um sétimo no país de Gales, com uma verdadeira caravana de juízes e advogados viajando de cidade em cidade, passando uma semana em cada. Esses dois assizes eram o ápice do calendário social da maioria das cidades provinciais”
(RORY MUIR, Gentlemen of Uncertain Fortune – How younger sons made their way in Jane Austen’s England, página 94)

Se recusar um duelo não está sempre em seu poder, desafiar alguém está, e a incerteza de o desafiado aceitar e não levar o assunto para os tribunais é o suficiente para deter um homem de bom senso de tomar tal caminho. Se agir assim, você estará deixando a cargo de seu inimigo uma pena de multa ou prisão, e as cortes, quando tais casos são levados até elas, estão determinadas, como eu tenho observado, a não poupar o desafiante, na esperança de acabar com essa prática.

Se você for reduzido à necessidade de desafiar alguém para um duelo, nunca o faça por escrito, mas através de um ajudante. A carta poderá ser usada como evidência em um processo; o ajudante não, pois para te condenar, terá que condenar a si mesmo, o que nenhuma corte o obrigará a fazer. Essa evidência pode ser retida pela parte, mas essa é uma situação que eu espero que você nunca se encontre. E nunca vá para um duelo sem um ajudante; por não ter feito isso, o major Campbell, que eu mencionei anteriormente, não tendo testemunhas de sua conduta, sofreu as consequências.

Determine a si mesmo a agir com cautela ao desafiar alguém para um duelo ou ao aceitar um desafio; resolva nunca ser um ajudante em tais casos, pois a lei condena o ajudante como cúmplice e o confere à ele a mesma culpa do duelista principal, e se esse duelista for condenado por homicídio, o ajudante também será. Por que colocar a mão no fogo? Se pedirem para que você faça esse favor, recuse e diga: “Então, você irá cometer um assassinato e quer que eu te ajude. Se eu fizesse isso, eu seria tão louco quanto você”. Se os cavalheiros em geral recusarem essa prática inumana, é esperado que os duelos se tornem mais raros.

Espero que vocês tenham gostado!

Com carinho, Roberta.

A imagem em destaque retirada daqui.
Postado por: Roberta Ouriques

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