A trégua de natal de 1914

A trégua de natal de 1914 foi um evento bem famoso ocorrido durante a primeira guerra mundial, mas eu, a doida do natal, só descobri quando fui fazer (bem aleatoriamente, diga-se de passagem) a prova de um vestibular aqui na minha cidade. Tudo acontece por um propósito, né? Se eu não tivesse resolvido fazer aquele vestibular sem estudar uma página de um livro, eu não teria conhecido essa história que, verdade seja dita, me deixa encantada. Ou seja, nem todo o meu tempo foi perdido naquele dia rs!

A gente vive rodeado de filmes e histórias de natal que buscam ressaltar o lado bom do ser humano, a caridade, a esperança, o perdão, etc etc, e a trégua de natal de 1914 não fica de fora. A mensagem que podemos tirar desse evento é, além de linda, importantíssima, como publicado no Wall Street Journal: “O que surgiu da neblina e da miséria foi uma história de natal, uma ótima história de natal que, na verdade, pode ser resumida nesse adjetivo: inspiradora”.

Mas no que consistiu essa trégua?

Muita informação que a gente encontra por aí fantasia muito a coisa toda, mas o fato é que, na véspera e no dia de natal, soldados em vários fronts de batalha cessaram fogo:

“Com a aproximação do natal, o Papa Bento XV fez um apelo público pela suspensão das hostilidades durante o sagrado feriado cristão. A ideia foi rejeitada de imediato por governos e comandantes, mas os soldados se mostraram mais receptivos. As tréguas espontâneas de 1914 – pois houve muitas em todos os fronts, exceto no sérvio – capturaram a imaginação da posteridade, como símbolo da futilidade de um conflito no qual não havia nenhuma verdadeira animosidade ou propósito” (Max Hastings, Catástrofe – 1914: A Europa vai à guerra, tradução de Berilo Vargas).
“Os espasmos de sentimentalidade e autopiedade exibidos em dezembro de 1914, quase todos de iniciativa alemã, refletiam apenas o fato de que no natal quase todos os aderentes de uma cultura cristã ansiavam por estar em casa com seus entes queridos, ao passo que agora, em vez disso, milhões amontoavam-se tremendo na neve e na imundície de campos de matança em terras alheias. O emocionalismo gerado por essas circunstâncias levou muitos homens a fazerem fugazes gestos de humanidade, antes de voltarem às rotinas de barbárie determinadas por seus líderes nacionais” (Max Hastings, Catástrofe – 1914: A Europa vai à guerra, tradução de Berilo Vargas).

Há vários relatos de oficiais e soldados comentando a ocasião, como o do oficial alemão Walther Stennes: “Ao meio-dia da véspera de natal, o fogo foi cessado completamente, em ambos os fronts. Então o oficial que controlava os sentinelas veio até mim e disse ‘Você está esperando um ataque surpresa? Porque essa situação é muito incomum’. Eu disse, ‘Não, acho que não. Mas, de qualquer forma, todo mundo está acordado, ninguém está dormindo e os sentinelas estão de serviço. Então acho que está tudo bem'”.

Foram muitos tipos de confraternizações (e alguns momentos tristes, pois os combatentes aproveitaram para enterrar seus mortos)! Pinheirinhos de natal (soldados alemães colocaram árvores iluminadas nas trincheiras), luzinhas, cantigas (até mesmo uma batalha de cantigas natalinas!), troca de presentes e dizem que até jogos de futebol.

Uma partida de futebol entre soldados germânicos e fuzileiros galeses no dia do armistício em Dale Barracks: uma forma de lembrar a trégua de natal entre a Alemanha e a Grã-Bretanha.

O site These Football Times (a imagem acima, inclusive, foi retirada do site) escreveu: “Mesmo que a fraternização não tenha começado com os alemães cantando Stille Nacht na véspera de natal ou que ninguém lembre de ter jogado futebol nas linhas de frente, a história segue cheia de mistérios, comoção e esperança na época de natal. É fácil entender porque tantas histórias de guerra conseguem revelar a humanidade, para o bem ou para o mal”. O artigo continua: “Devemos imaginar o quanto a guerra mudou os homens enredados nesse conflito. As batalhas duravam meses, não dias. A perda das vidas, o choque das artilharias, a obliteração da mente e do corpo humano levaram os soldados para um mundo de pesadelos que eles não podiam imaginar. Não é difícil de visualizar jovens rapazes sonhando com os prazeres da vida em casa: esposas, famílias, filhos, comida quente, lençóis limpos… futebol”.

Um soldado de 19 anos chamado Ernie Williams retratou a forma como o futebol juntou os lados inimigos no livro Fire and Movement: The British Expeditionary Force and the Campaign of 1914, de Peter Harts. Em 1983, ele concedeu uma entrevista e contou a mesma história: “A bola veio de algum lugar, não sei de onde, mas foi do lado deles – não foi do nosso lado que veio a bola. Foi futebol propriamente dito. Eles tiraram os casacos de alguns deles e colocaram no chão para servir de gol. Um camarada fez um gol e aí foi uma festa geral. Eu penso que pelo menos uns cem homens participaram. Eu mesmo fiz minha parte – eu era bom quando tinha 19 anos. Todo mundo parecia estar se divertindo. Não havia nenhum tipo de má vontade”.

Há também o relato do tenente alemão Johannes Niemann:

“Um soldado escocês apareceu com uma bola de futebol que parecia ter vindo de lugar nenhum e alguns minutos depois uma partida de futebol começou. Os escoceses marcaram seu gol com seus chapéus esquisitos e nós fizemos a mesma coisa. Estava longe de ser fácil jogar no chão congelado, mas nós continuamos, nos mantendo dentro das regras, apesar de o jogo ter durado apenas uma hora e de não termos nenhum árbitro”.

Abaixo, vou colocar algumas cartas de alguns dos ‘participantes’ da trégua natalina (retiradas daqui):

“Escalando o parapeito, eu vi o que eu irei lembrar até o dia da minha morte. Em toda a extensão das trincheiras deles estavam penduradas lanternas de papel e iluminações de vários modelos, muitas delas sugerindo que estavam penduradas em árvores de natal”, Sargento A. Lovell.
“Primeiro os alemães cantaram suas cantigas, e então nós cantamos as nossas, até que começamos a cantar O Come, All Ye Faithful. Os alemães imediatamente se juntaram ao coro cantando a versão em latim, Adeste Fideles. E eu pensei, bem, isso é uma coisa extraordinária: duas nações cantando a mesma canção natalina no meio da guerra”, Fuzileiro Graham Williams.
“Vi com meus próprios olhos o que eu acreditava ser loucura algumas horas atrás. Um inglês, a quem outro inglês logo se uniu, caminhou até nós até que estivesse mais perto das nossas trincheiras do que das dele, e então alguns dos nossos se aproximaram. E então, germânicos e ingleses, que até aquele momento eram os maiores inimigos, apertaram as mãos, conversaram e trocaram pertences”, Josef Wenzl, soldado alemão.
“Sério, ninguém diria que estávamos em guerra. Ali estávamos, inimigos confraternizando com os inimigos. Eles são como nós quando se trata de suas mães, namoradas, das esposas que nos esperam em casa. E pensar que em algumas horas estaremos atirando uns nos outros de novo”, Gunner Masterton, Artilharia.

É bom ressaltar que a trégua não foi oficial e, mais do que isso, foi ilícita. Muitos oficiais desaprovaram o evento e tomaram precauções para que aquilo não se repetisse nos outros anos. E, como disse o site Smithsonian:

“Muitos, talvez quase a maioria, dos milhares de homens que celebraram o natal juntos em 1914 não viveram para ver o retorno da paz. Mas para aqueles que sobreviveram, a trégua foi algo para nunca mais ser esquecido”.

Diás atrás, eu assisti o filme Joyeux Noël, que conta a história da trégua de natal. Assim, eu gostei (mesmo!), mas achei que o enredo podia ter sido mais agitado e mais emocionante rs. De qualquer forma, super indico o filme 🙂

E, para finalizar, deixo como dica o vídeo da música Pipes of Peace, do Paul McCartney. Eu tentei colocar o vídeo aqui, mas não consegui 🙁

Paul McCartney em cena do vídeo da música “Pipes of Peace” (retirada daqui)

Espero que tenham gostado!

Com muito carinho, Roberta.

Fontes: Imperial War Museums, These Football Times, Smithsonian e o livro Catástrofe – 1914: A Europa vai à guerra, de Max Hastings.

Postado por: Roberta Ouriques

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