Comunidades negras na Inglaterra de Jane Austen

Esse texto é uma tradução do artigo da autora Maria Grace publicado aqui.

Enquanto não há uma maneira de saber com certeza quem fazia parte do círculo de amizades de Jane Austen durante sua vida, é muito provável que britânicos negros estivessem entre aqueles que eram próximos dela.

Os primeiros britânicos negros

Existem evidências de negros britânicos desde os tempos da Britânia (província romana). Análises arqueológicas de vinte e dois conjuntos de restos mortais de Sothwark, na Londres daquela época, revelaram que ao menos um deles possuía ancestralidade africana. As análises do esqueleto “Ivory Bangle Lady” sugerem uma mistura: branca e negra. Restos encontrados em 1953 em East Sussex (“Beachy Head Lady” –esqueleto datado de 245 d.C) e restos encontrados em 2013 em Fairford, Gloucestershire (900 a 1000 anos d.C) também parecem possuir ancestrais da África subsariana. E evidências escritas sugerem a presença de residentes que vinham da então África do Norte (uma parte da costa das modernas Argélia, Líbia e Tunísia) na Britânia.

Durante a Renascença

No início dos anos mil e quinhentos, negros podiam ser encontrados na Escócia e nas cortes reais onde ocupavam posições na esfera do entretenimento: “Eles logo se tornaram não apenas populares, mas elegantemente essenciais também na Inglaterra (Gerzina, 1995)”. A maioria dos historiadores, contudo, considera a chegada de cinco africanos em 1555, com o intuito de estudar inglês e facilitar o comércio, como o início de uma presença contínua de negros na Grã-Bretanha.

Durante o reinado da rainha Elizabeth I, a população negra de Londres era constituída em sua maioria por indivíduos livres, muitos dos quais se casavam com ingleses nativos. Registros das paróquias mostram que muitos dos londrinos negros eram criados, mas alguns trabalhavam em estabelecimentos comerciais locais (Wood, 2012).

Na Inglaterra Georgiana

A população negra na Grã-Bretanha cresceu exponencialmente durante os séculos XVII e XVIII, muito graças ao denominado comércio triangular. Navios mercantes com produtos da Grã-Bretanha trocavam os produtos por escravos nas regiões costeiras da África ocidental. Os escravos, então, eram transportados e vendidos para trabalhar em plantações. Os produtos do trabalho escravo, incluindo açúcar e rum, retornavam para a Grã-Bretanha para serem comercializados.

As comunidades negras começaram a se desenvolver e florescer nas cidades portuárias mais associadas com o comércio de escravos, como Liverpool e Bristol. Entre os primeiros moradores negros dessas cidades incluem-se marinheiros de navios mercantes, soldados e marinheiros da Marinha Britânica, as crianças de ascendência mista dos comerciantes que eram enviadas para serem educadas na Inglaterra, os criados e escravos livres (durante a Revolução Americana, escravos foragidos frequentemente se juntavam às forças armadas britânicas com a promessa de liberdade na Grã-Bretanha).

Mais ou menos na metade do século XVIII, os negros contabilizavam algo perto de um a três por cento da população de Londres. Em 1786, alguns estimavam que o número de criados negros em Londres era vinte mil, de uma população de seiscentos e setenta e seis mil e duzentas e cinquenta pessoas (outros, dependendo do ano e da fonte, falam em algo entre dez e trinta mil, embora o número correto provavelmente fique em torno de quinze mil – Gerzina, 1995). Consequentemente, nessa época, negros e negras eram uma visão familiar nas ruas de Londres.

A escravidão na Inglaterra Georgiana

Tecnicamente, a decisão do caso Cartwright de 1569 estabeleceu que a escravidão era ilegal na Inglaterra e em 1706 o chefe do Judiciário Holt manteve o posicionamento. Contudo, essas decisões eram rotineiramente ignoradas e os escravos continuavam a ser comprados e vendidos durante os anos 1700.

Finalmente, o caso de James Somerset – um escravo fugitivo da Virgínia em 1772 – contestou a escravidão inglesa. O chefe do Judiciário William Murray, primeiro conde de Mansfield, determinou que um mestre não podia obrigar um escravo a deixar o reino contra a sua vontade. Mansfield deixou claro que sua decisão não abolia a escravidão e, de fato, a ordem era vaga o suficiente para permitir que negros continuassem a ser sequestrados nas ruas de Londres, Liverpool e Bristol e vendidos em outros locais.

Ainda assim, a decisão ajudou a alimentar o declínio da escravidão. O ato contra o comércio de escravos de 1807 finalmente aboliu o comércio de escravos, mas não a prática da escravidão – que teria que aguardar o ato de abolição da escravatura de 1833 para finalmente ser eliminada.

A comunidade negra na Inglaterra Georgiana

Mesmo em meio a esse período de escravidão, especialmente em Londres, uma próspera comunidade negra se desenvolveu, comunidade esta que evidenciava valores como ações conjuntas e solidariedade (Gerzina, 19995).

“A própria palavra ‘preto’ era um termo vago; os homens e mulheres na Grã-Bretanha vinham de muitas tribos e regiões diferentes da África. E falavam variados tipos de inglês: alguns, ensinados por seus donos aristocratas, usavam uma linguagem refinada; outros, educados no mar, usavam a linguagem dos marinheiros, uma mistura dos sotaques cockney, crioulo, irlandês, espanhol e americano. Tudo isso gerou grandes diferenças em seus modos de vida, e a classe social era tão importante quanto a cor de pele quando se tratava de lidar com as vicissitudes diárias” (Sandhu, 2011).

Essas diferenças entre classes sociais faziam tanta diferença na comunidade negra quanto no restante da Inglaterra. Havia aqueles que eram capazes de manter um padrão de vida confortável e até mesmo próspero na comunidade negra livre. Cesar Picton e George Africanus são apenas dois exemplos de comerciantes negros bem sucedidos. Há evidências de tabernas com uma clientela predominantemente negra, algumas de propriedade de homens negros, e da existência de eventos sociais para a comunidade negra. Também é algo certo que os negros participavam ativamente na cultura dos trabalhadores de Londres.

Apesar da existência de uma comunidade, apenas 20% da população negra era formada por mulheres (Sandhu, 2011), em parte em razão do desequilíbrio entre os gêneros e em parte em razão da difusão social e geográfica, uma vez que muitos homens negros se casavam com mulheres locais. No geral, casamentos inter-raciais não eram vistos como problemáticos, principalmente porque ocorriam entre as classes trabalhadoras mais pobres. Essa atitude “é visivelmente clara nas figuras e imagens de Hogarth e Rowlandson, entre tantos outros, bem como nos romances e peças de teatro, de que a raça era algo secundário, pelo menos para a classe trabalhadora” (Gerzina, 1995).

Essa classe trabalhadora compunha a maior parte da sociedade inglesa, e uma parte ainda maior da sociedade negra. Mas onde os negros trabalhadores encontravam emprego?

Para alguns homens negros, a vida em alto-mar oferecia mais oportunidades do que a vida em terra firma. Embora eles quase nunca alcançassem ranques mais altos, oficiais negros não eram incomuns – mas esses marinheiros eram a exceção e não a regra. Para a maioria, o serviço doméstico e ocupações urbanas como carregadores, balseiros, vendedores ambulantes e chairmen (carregavam pessoas em cadeirinhas) eram os principais empregos. Ainda assim, mesmo quando encontravam tais empregos, o fantasma da pobreza nunca estava muito longe.

O problema da pobreza

Em 1731, o prefeito de Londres decidiu que “nenhum negro pode ser empregado como aprendiz de nenhum comerciante ou artesão”. Por causa dessa regra, muitos dos negros eram obrigados a trabalhar como criados (Sandhu, 2011).

Durante o mesmo período, muitos ex-escravos americanos que se alistaram no exercito e que lutaram pelo lado inglês na guerra da independência americana, eram trazidos para viver como homens livres em Londres. Deixados sem pensões ou acesso ao sistema de ajuda aos pobres estabelecido pela Old Poor Law, e muitas vezes sem habilidades, muitos eram atingidos pela pobreza e acabavam se tornando mendigos nas ruas. Por esse motivo, “a pobreza negra” se tornou um tema social bastante discutido no final do século XVIII (Gerzina, 1995). Na verdade, contudo, o pobre de qualquer raça tinha poucas chances de conseguir um bom emprego e melhorar sua situação.

Alguns negros pobres encontravam um teto nas áreas de St. Giles ou Seven Dials, St. Paul’s, Ratcliff, Limehouse e em Wapping, nas margens do rio. Os negros forçados a viver em tais áreas compartilhavam condições precárias de saneamento com os brancos pobres que constituíam a maior parte da população. Esses não eram guetos definidos pela raça, mas pela situação, habitados por aqueles cujos únicos recursos contra morrer de fome eram o roubo, a prostituição e a mendicância (Gerzina, 1995).

Conclusão

Embora os pobres frequentemente estivessem fora do campo de visão e fora do pensamento das classes mais altas, isso não significa que os negros eram invisíveis. Mesmo se alguém morasse longe das comunidades negras da Inglaterra Georgiana, as pessoas eram acostumadas a ver negros no teatro, tanto como atores quanto como espectadores, e também os viam como músicos e artistas em feiras. Ou seja, os negros britânicos eram uma parte ativa da sociedade britânica no tempo de Jane Austen.

A imagem em destaque foi retirada daqui e é uma imagem da personagem Georgiana Lambe, da série Sanditon, interpretada por Crystal Clarke.
Postado por: Roberta Ouriques

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